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A mulher repartida

"Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-Io. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco - pela bondade necessária com que nos salvamos - ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura."
Via meu corpo com a liberdade da curiosidade de criança. Esse tempo foi curto; as brincadeiras continuaram, eu tinha meu espaço, mas lá estavam as críticas por não me vestir, nem me comportar como uma menina.
Eu quis mesmo ser menino, na maior parte da minha vida. Ora porque eu me apaixonava frequentemente pelas mulheres, ora por que tinha meu corpo desrespeitado pelos olhares e toques masculinos. Na maior parte do tempo, eu quis me esconder. Era uma loucura pensar que o mesmo corpo que era ignorado em suas necessidades de aceitação também era alvo de curiosidade e desrespeito de algumas pessoas. Com o tempo eu fui me escondendo; com o tempo fui me descolando do meu corpo; fui desaprendendo a dançar, a ter liberdade nos gestos; fui desaprendendo a sentir.
Eu quis ser meninos muitas vezes. Via a liberdade com que meu irmão andava nas ruas e a segurança que ele me passava de que com ele ninguém ousaria abusos. Quis ser homem para ser admirada e desejada pelas amigas da mesma idade; quis ser homem para não me sentir mais culpada por não gostar de meninos. Eu queria ser homem para não ter que ouvir de algumas vizinhas que eu precisava me arrumar ou me comportar como uma menina. Eu queria ser menino para não me sentir mais culpada, vigiada ou abusada.
Com o tempo, aprendi que não são só as mulheres que sofrem abuso. Conheci outras formas de violência com o corpo. Passei a culpabilizar meu corpo por tudo, ele se tornou pecaminoso por sua natureza. Eu só teria paz se negasse a meu maior inimigo. Eu já não me importava por ser menina, ou ficava melancólica pelo corpo que tinha. Eu abandonei meu corpo e passei a habitar somente em minha mente e alma.
Meu corpo era um desvio; era pecaminoso e pouco útil. Eu já não olhava ao espelho, já não sabia se engordava ou emagrecia. Eu abandonei o direito e a liberdade sobre meu próprio corpo, e me refugiei na mente vigilante de uma cristã.
Neguei por tantos anos a mim mesma que hoje faço uma trajetória que se assemelha ao reaprender a andar. Coloquei espelhos na casa e faço exercícios de olhar e me ver inteira. Meus dias são para relembrar que não preciso me flagelar; são para dizer a mim mesma que meu corpo não é culpado por mal algum, e que meus desejos não devem ser castigados.
Estou descobrindo a alegria de ser mulher e homem ao mesmo tempo, e não ter que dar satisfação a ninguém por isso. Estou resgatando a força e a harmonia entre meus membros e percebendo que posso novamente ter a energia circulando pelo corpo inteiro e usar isso em favor da minha existência.Hoje me sinto um pouco menos repartida; minha mente nem sempre colabora no processo. Eu me machuco ainda; perco a noção do limite das coisas e das pessoas no meio desta guerra travada por anos entre meu corpo e minha mente.
Tenho que fazer resgates e perdões a todo tempo para poder trilhar o caminho de volta ao meu "eu autêntico". Tenho que transgredir as leis e os ensinamentos que estão gravados na mente para dar nova vida ao corpo esquecido.
Comentários
E quanto mais te conheço, mais te admiro!
(Clarice Lispector - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)