"Mesmo que não venha o trem, não posso parar"

Estou voltando ao tema dos encontros e desencontros. Volta e meia uso do recurso de refazer o caminho para tentar resgatar onde e quando foi que eu esqueci dos traços que me fizeram ser quem sou. Volto bem atrás se for necessário para reconstituir meu desenho e isso é minha salvação. Recorro ao passado nos momentos de desespero e volto sempre refeita. Vejo e sinto todas as coisas graças a minha memória. Recupero os cheiros da infância: a grama molhada, o canil em agito por causa das crianças que frequentavam minha casa, o cheiro do horário do almoço, o barulho de família grande, as brigas, a televisão ligada no último volume, as risadas, as refeições que nunca tinham fim. Eu recupero minhas cores quando refaço o caminho. Dessa vez, eu literalmente voltei ao tempo. Peguei um trem na Central do Brasil, refiz o caminho parando em todas as estações e a sensação que eu tinha era passar toda a minha vida em algumas horas. Eu revi meu dias de faculdade, as saídas a noite pela Mangueira, as aulas na quadra de samba, os meninos do projeto comunitário, meus projetos sociais e minha força espiritual. Revi minhas paixões conflitantes, os amores que não vivi por medo de ser rejeitada pelas pessoas mais próximas; pelo medo de não seguir os planos que traçaram para mim, por não desejar desagradar a Deus. Senti a dor de quem não pode exercer sua liberdade, o mesmo sentimento de sufocamento pelas palavras que eu evitava dizer. Lembrei das amigas de faculdade que me receberam de abraços abertos, mesmo que eu estivesse em conflito entre a mulher poeta e a religiosa. Revi os muros da faculdade que realizou meu sonho em conhecer parte do mundo da literatura... Eu me vi - em alguns momentos - novamente pregando o evangelho pelos vagões e minha fé inabalável em um Deus de amor e graças. Minha falta de vergonha em falar com pessoas que nunca vi na vida, meus trabalhos nas estações durante a madrugada alimentando moradores de comida e atenção. Fui recuperando todas essas minhas faces, a mulher cristã, poeta, estudante, em conflito, amorosa, doadora, contida... Vi minha infância, meu irmão Márcio correndo pelo bairro e brigando comigo na maior parte do tempo. Vi nossas bicicletas sujas da poeira que levantávamos durante os passeios sem fim que marcavam nossas férias. Da pedreira que subi algumas vezes e de onde saíam as histórias que inventávamos. Eu vi minha vida quase toda passar em uma viagem de trem e a sensação que tive é que só tenho do que me orgulhar da minha vida, dos meus tropeços, minhas mudanças, minhas escolhas. Percebi que nunca me sentirei só tendo tantas lembranças que me alimentam e me fazem ter muito orgulho de quem eu sou.

Comentários

Toni disse…
"Porque Letícia é assim, todas numa só."

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