Memórias

Ele queria escrever um conto, talvez um romance e até quem sabe um livro. Agora ele tinha tempo porque já estava aposentado. Um amigo de infância, jornalista, havia até oferecido um espaço no jornal da cidade, afinal todos esperavam que aquele talento, visível desde o tempo de escola desabrochasse um dia.Guilherme chegara aos 60 anos, e agora - distante do seu trabalho exaustivo como médico na prefeitura de Três Rios -poderia dedicar sua vida ao que sempre amou, as palavras.

- Mulher, preciso escrever um conto para o jornal e nem sei por onde começar. Disse Guilherme a Fernanda, mulher com quem estava casado há mais de 30 anos
- Querido, você só precisa colocar essa cabeça para funcionar. Até porque você tem é história para contar.

Ele olhou para sua casa que já havia sido de seus pais, para os móveis que pareciam os mesmos, para os retratos da família na parede. Ele tinha muitas histórias para contar e Fernanda sabia disso. Resolveu tocar em coisas que tinham memórias: os quadros que sua avó materna pintava, os livros que seu pai colecionava, o piano...e de repente ele foi dispertado por uma imagem. Era uma foto antiga, de sua adolecência, em que ele estava em cima de sua bicleta. Guilherme amava aquela bicicleta que o avô havia reformado para ele, um modelo ibério, aro 28. Foi aí que ele percebeu que tinha muitas histórias para contar, e que o tempo e as obrigações, as exigências de uma vida de médico haviam ofuscado o brilho e energia que tinha no tempo de menino.Guilherme gritou a esposa:
-Você tem razão, Fernanda. Tenho milhares de histórias para contar.
E a partir daí o médico aposentado resolveu resgatar todas as suas lembranças de infância. Resolveu que escreveria um conto sobre algum episódio do seu tempo de menino. E nada poderia ser melhor do que a bicicleta ibéria para começar a contar uma bela história.Lembrou de que quando era criança passava horas pesseando pelo bairro com sua bicicleta antiga. Conhecia todas as pessoas da cidade, era capaz de passar um dia inteiro na rua conhecendo e conversando com pessoas diferentes. Conhecia a rotina de todos; era um bom ouvinte para os velhos, e adorava caçar morcegos com as meninas, subir a pedreira antiga. Lembrou de que apesar de ser alertado por sua mãe, adorava passar para o outro lado da linha do trem. Foi nesse momento da memória que Guilherme, homem já adulto, lembrou de uma história que marcara sua vida. Resolveu começar a escrever....
(...)Todas essas pessoas, histórias, casas, apesar de dipertarem o interesse e atenção do menino, nada era tão forte como a curiosidade que uma chácara dispertava nele. Era uma casa de família hippie. Pelo menos era assim que as pessoas chamavam, e ele nem sabia direito o que era ser hippie. Mas ele gostava de tudo o que envolvia aquela família, aquela casa; gostava das cores da entrada daquela casa, do cheiro de mato queimando no quintal, de fogueira sempre acessa com crianças envolta. A casa era azul e tinha umas pinturas engraçadas nas paredes que eram feitas por mãos pequenas; além de gaiolas, de caixas coloridas, tapetes. Aquela casa parecia mesmo casa de criança, uma casa na árvore e ele às vezes desejava morar lá ...Ele gostava também do cabelo das crianças, que eram bem diferentes do dele - eram com cortes que mais pareciam terem sido feitos por outras crianças. Aquela casa toda cheirava a diversão. E eles sempre tinham música, dança, risadas, mas pouquissima comida, porque todos eram tão magros! Ele passou espiar aquela família, todos os dias, no mesmo horário. Mas um dia , quando ele estava escondido com sua bicicleta, atrás de uma árvore gigantesca, ele viu a mãe da casa se aproximando, ele havia sido descoberto. Ela foi se aproximando com aquela cor branca, ela era quase uma mulher de papel, branca e muito magra; ela tinha um corpo magro, comprido e grandes olhos azuis. E com sua mãos enormes ela pegou a mão dele e o levou para dentro do quintal. Ele parecia ter sido carregado por aquelas mãos brancas, e guiado pelo sorriso doce e sereno da bela mulher. Naquele momento alguma coisa estranha aconteceu; ele havia sido encantado por aquela família. As pessoas mesmo diziam que eles eram esquisitos, um povo hippie, talvez bruxos. Naquela tarde todos eles - o menino também - dançaram, pularam, riram e brincaram. O menino pareceu sentir naquele momento todo encanto e a adrenalina igual ao que sentia ao andar com a Ibéria sem ferios. Era como ver todas as cenas juntas: as bolhas voando nas mãos das crianças, os morcegos, os sonhos dos velhos, a rotina dos velhos, a Ibéria deslizando pela pedreira do bairro.Nesse dia o menino descobrira algumas coisas: a magia de uma vida diferente, a alegria da infância, a beleza de uma bela mulher.Só depois de adulto, homem idoso e aposentado é que ele viria a relembrar essas belas histórias, momentos de alegria que o sustentaram por um vida inteira.
(...)Nessa hora Guilherme estava terminando de ler para Fernanda seu primeiro conto de memórias...e ela, chorando abraçava o marido, reconhecia nele, naquele momento, aquele menino apaixonado pela vida e por uma dona de cada hippie.

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