Alpargatas

Entrei no último vagão e parecia ser também a última chance de tomar o metrô naquela noite fria. Entrei de cabeça baixa, conseqüência de mais uma das minhas poucas aventuras pelo mundo das bebidas destiladas, e também por mais uma investida frustrada pelos bons lugares da zona sul.

De cabeça baixa, procurei um lugar para me sentar quando me deparei com aqueles belos sapatos; na verdade, acho que eram os cadarços vermelhos que chamavam minha atenção. Parece que um mundo de pés, sapatos sem graça passaram por mim naquela noite, mas os sapato branco e vermelho roubou a cena. Não pude evitar e fiquei presa àquele objeto que mais me parecia um par de alpargatas, pela delicadeza e leveza do material.

Confesso que tive um pouco de vergonha, de que talvez fosse descoberta no meio daquele tipo de gente que freqüenta o último vagão, do último horário do metrô, em uma sexta-feira à noite. Tive medo de que eles descobrissem meus pensamentos, meus segredos, ou minha arte ainda em construção.

Tentei pegar um papel, ou tirar meu computador da bolsa e escrever um texto ali mesmo - olhando para aqueles belos sapatos que ganhavam vida no vagão - como um pintor que cria olhando com paixão para sua bela modelo. Faltou coragem para isso e continue fitando chão.
Olhei e vi que aquela sapatilha parecia perfeita naqueles pés, e que eles mexiam em perfeita harmonia com todo aquele corpo de mulher. Não vi o rosto dela, nem me lembro se era nova, ou velha, ou como eram seus cabelos; só sei que aqueles seus sapatos eram perfeitos: uma sapatilha branca e vermelha, com brilhantes cadarços vermelhos. E eram meias-finas opacas que davam o contraste ao quadro.

Não sou adepta e muito menos fiz tratamentos cromoterápicos, mas sei que naquela sexta-feira, depois de andar pelas ruas do Catete sem ter a menor esperança de encontrar você, fui tomada por uma energia nova por meio da cor vermelha daqueles pequenos sapatos. Por um momento, percebi a paixão que há em mim: primeiro, é claro, por belos sapatos; depois por pés, pessoas, ruas da zona sul, meias pretas, poesia, arte, Vida. Percebi que a paixão que existe em mim é maior que qualquer coisa. Enfim, chegamos ao Estácio e eu acompanhei a despedida daqueles sapatos; a mulher desceu, e eu sorri.

Letícia Calhau.

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